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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

CRÔNICA DAS REMINISCÊNCIAS PERDIDAS

Hoje pela manha, quando levava minha filha para o colégio, fui tomado por uma sensação, particularmente, estranha. Toda manhã quando entramos no carro, depois de nossa disputa habitual sobre que musica tocar, Natalia costuma ligar o rádio, e esta de manhã não foi diferente. Porém, hoje, curiosamente, ela me pergunta: pai que musica é essa? Imediatamente respondo: Ah Natália, esta é uma música do grupo alemão Kraftwerk... depois, no final, descobrimos que a tal música se chamava Das Model, e em seguida, complementei lembrando que a mãe dela gostava muito desta música. Neste exato momento fui levado não a época em que ouvi pela primeira vez Das Model, na minha adolescência, mas, é claro, ao período quando ainda vivia junto com Cecile e havíamos redescoberto juntos que gostávamos da mesma música. Naquela época, lembro o quanto falamos de nossa adolescência, afinal, tão diferentes, porém que cada um, a sua própria maneira, havia vivido o que vivemos, e todas essas coisas que sempre afloram arrepiadamente em momentos como esses. Lembro que este fato me levou a comprar o famoso disco Die Mensch-Maschine, como que acreditando que ouvindo aquela música eu pudesse guardar aquela sensação vivida na minha adolescência. O curioso de toda essa história é que não consigo mais me lembrar das impressões que senti naquela época quando ouvi esta música a respeito de minha adolescência passada no final da década de setenta em Rio dos Cedros. Por que quando ouvi Das Model naquela época fui levado a Rio dos Cedros e quando ouvi Das Model essa manha fui levado a Florianópolis do final da década de noventa? Por que não tenho mais acesso à minha adolescência com Das Model? Nesse momento senti uma espécie de nostalgia do tempo nostálgico; ou melhor, senti uma nostalgia nostálgica, como se a nostalgia da adolescência tivesse se perdido também no passado. Senti como se Das Model deixasse de ser meu bolinho madaleine por meio do qual eu poderia reviver o tempo perdido, porque para chegar à adolescência eu precisaria passar sempre pela experiência do tempo redivivo naquela época vivida junto a Cecile.




mnemosine
Estranhos são os caminhos da memória, não? Sempre tão evasivos, sempre tão seletivos, sempre tão traiçoeiros... As reminiscências estão sempre dentro de nós, mas só podem ser sacadas quando são ativadas emocionalmente. Uma imagem, um cheiro, ou aquela música tocando no rádio pela manhã... e, repentinamente, uma experiência é extraída do sedimento de acontecimentos cotidianamente depositados no passado e, quando aflora, é atualizada. As emoções parecem ser a porta do passado por meio do qual iluminamos o tempo perdido. Na lembrança, ainda que se possa sentir um grau de vivacidade mais fraco do que a experiência ou da impressão presente, acreditamos que já passamos por aquela experiência passada de que nos recordamos no momento presente. A reminiscência constitui as ideias que temos da sensação que recordamos dos momentos vividos no passado. Somente quando o presente é preenchido pela memória é que podemos confiar nos sentimentos, e é por isso que a dor ou a felicidade só fazem sentido quando são atualizadas por algum tipo de lembrança que preenche o presente. Ao evocar a memória de um acontecimento retiramos a lembrança de uma situação e colocamos em outra. Na verdade são as lembranças que nos tornam humanos, seja lá o que isso possa significar.

É esta vertigem do vazio que move a luta dos replicantes de Blade Runner (1986). Os replicantes são os robôs Nexus 6 do filme realizado por Ridley Scott, baseado no livro Do Androids Dream of Eletric Sheep de Phillip K. Dick, 1968. Projetados para se tornarem escravos do homem nas colonizações de outros planetas, possuíam aptidões, força física, raciocínio e inteligência superiores aos seres humanos, porém foram concebidos para durar apenas quatro anos. Apesar disso, os replicantes acabaram desenvolvendo desejos e inquietudes típicas dos seres humanos, e após a realização de um motim sangrento para retornar à Terra, foram declarados ilegais e condenados a morte. Policiais especiais, os blade runners, tinham ordens de atirar para matar qualquer replicante, o que era chamado de “remoção”. A busca desesperada por mais tempo de vida dos replicantes, na verdade, encontra-se imersa na busca de sua identidade inexistente; não possuem memória. Este é o caso de Raquel, uma andróide experimental que acredita ser um humano porque não sabe que teve implantada sua memória, mas que progressivamente passa a desconfiar de sua identidade, pois suas memórias da infância são somente visuais dos acontecimentos passados, mas sem a sensação de tê-los vivido. O drama de Raquel consiste no fato de que mesmo que se lembre de certos acontecimentos, a memória visual não parece ter o acompanhamento do mínimo grau de vivacidade ou de sensação de ter experienciado esses acontecimentos. É por isso que no momento mais dramático do filme, o replicante Roy traduz a importância da questão da memória quando, numa cena magistral da frugalidade, diz: “I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the darkness at Tan Hauser Gate. All those moments will be lost in time like tears in rain. Time to die”. A angústia da experiência singular de vida dos replicantes revela que a essência da identidade é a memória e a memória se tem revivendo a história da vida. Era exatamente por isto que os replicantes queriam desesperadamente mais vida.



Quem recorda supõe que já vivenciou aquilo que se lembra. Acreditamos que ao lembrar percebemos naquilo que se percebe algo que já foi percebido ou de que tem a sensação de já ter sentido. A memória constitui, portanto, uma interligação entre a experiência vivenciada e necessidade de evocá-la, o movimento que leva o passado para o presente. O que terei percebido sobre mim quando ouvi Das Model esta manhã? Que terei reconhecido em mim hoje pela manhã? Talvez a memória dos erros do passado... Talvez a desconfiança sobre o futuro... Talvez a crença de que não exista redenção longe das imperfeições... Por isso hoje pela manhã quando Natalia me fez aquela pergunta, toda aquela perplexidade sobre a memória e depois a melancolia que alimenta o meu desespero...


Mas e se a memória não for mera atenção e percepção? E se o chamado da memória não for apenas reviver, mas antes refazer, reconstituir, reinventar o passado? Se lembrar for produzir o passado? À noite fomos ao Desfile da Oktoberfest, e Natália, que nunca tinha visto, se divertiu muito e me perguntou: você não gosta do desfile? E eu respondi: são apenas pessoas fingindo ser algo que nunca fomos... E concluí dizendo: Natália, esses são alemães de mentirinha. Aqui a memória constitui uma experiência social. Um indivíduo quando sensibilizado por um acontecimento utiliza as referências de sua memória social e de outros sujeitos para entender o que está acontecendo. A minha memória existe sempre a partir de uma memória coletiva, na medida em que as lembranças são constituídas num contexto social. A origem de várias idéias, sensações, sentimentos que frequentemente atribuímos a nós são, na verdade, inspiradas no contexto social. É por isso que a memória pode ser simulada, e até mesmo criada com base em representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido, ou pela internalização de representações de uma memória histórica. Maurice Halbwachs La mémoire collective (1950), afirma que a lembrança é sempre uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e que é preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou já bem alterada. Embora sejam sempre os indivíduos que lembrem, é o contexto social que determina o que é “memorável” e as formas pelas quais deve ser lembrado. Assim, pode-se dizer que os desfiles da Oktoberfest simulam lembranças expandindo a nossa percepção do passado do nosso contexto social, pois não se refere ao passado vivido, mas ao passado imaginado, ou melhor, desejado. Eis ai o paradoxo dos desfiles da Oktoberfest: querem nos fazer lembrar algo que não vivemos!




7 comentários:

  1. Interessante o ponto de vista sobre a nostalgia que nos toma ao ativarmos as nossas memórias afetivas com os sentidos. Com certeza, a música seja umas das artes mais evocativas de nossas lembranças. Cada indivíduo possui um grau diferente desta sensibilidade, e cada momento de nossa vida estamos mais refratários ou suscetíveis a esta memória. Mas ela sempre está presente, ainda q recôndita no nosso âmago. As nossas 'tradições' alemãs, são em maior ou menor grau, traços de nossos antepassados sim. Muitos que têm origem germânica, vivenciaram este espírito lúdico da nossas festa. Claro que hoje, como tudo, está envolto numa embalagem comercial. São as tradições prêt-a-porter. Mas ainda há, lá no fundo, um traço de sinceridade.

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  2. A memória me angustia: não sei se é uma experiência individual ou social. Como sociologo tem a pensar a memória como um produto do contexto social.

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  3. Esqueci de comentar e que acho importante ser considerado quando tratamos questão da memória: 1) as diferenças entre a questão subjetiva e social; 2) o papel desempenhado pela memória.

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